domingo, 5 de janeiro de 2014

Ki: Mito ou realidade?


O que é o ki? Praticantes experientes de diversas artes orientais, instrutores e mestres dizem que o ki é a energia vital, algo que sustenta a vida em todas as suas formas. O que determina a saúde de uma pessoa, por exemplo, é o fluxo natural do ki. Quando essa energia não flui, a pessoa fica fraca e adoece com facilidade. Mas não são só os seres vivos que têm ki. Fala-se no ki do ar, da água, do solo e da luz solar — a natureza tem um ki que se manifesta no fluxo dos rios, na mudança das mares, nos ventos e nas tempestades.

A partir dessas idéias surgiram práticas que têm o objetivo de dominar o ki e utilizá-lo no desenvolvimento da saúde, da força física e do equilíbrio físico e mental. Algumas práticas vão além e propõem-se a desenvolver e utilizar o ki na cura de doenças, na defesa pessoal e mesmo em práticas paranormais.

Muitas pessoas esforçam-se para entender e explicar o que é o ki. Uma das explicações mais comuns é aquela que diz que o ki é a coordenação entre energia física e energia mental; algumas pessoas dizem que o ki é precisamente essa coordenação, o que vai além da simples soma de energia física e energia mental. Uma decorrência dessa explicação é a idéia de que o ki é intenção e vontade. Uma criança que não quer ser tomada no colo, por exemplo, torna-se mais pesada por causa de seu ki — seu corpo e sua vontade se coordenam de forma a não ser erguida do chão. No Aikido, uma mulher pequenina é capaz de neutralizar o ataque de um brutamontes através da união de sua atenção, sua vontade e seus movimentos.

Já se tentou associar o ki à eletricidade, ao pensamento e ao poder psiquíco. Cada uma dessas associações diz algo sobre o ki, mas todas as explicações somadas ainda parecem estar longe de defini-lo. A despeito da falta de explicações e das imprecisões usuais, muitas práticas se baseiam na existência e na possibilidade de utilizar o ki para um determinado fim — mais ou menos como um pintor aprende a misturar tintas e pintar um quadro, embora não saiba dizer o que faz com que o azul seja azul.

Uma dessas práticas é o Aikido, arte marcial japonesa criada em meados do séc. XX por Morihei Ueshiba. Aikido pode ser traduzido — com o perdão dos puristas — como “o caminho [do] da energia [ki] com harmonia [ai]” ou “o caminho [do] da unificação [ai] das energias [ki]“. No Aikido diz-se que o praticante torna-se invencível na medida em que desenvolve o ki, o que permitiria inclusive antever uma agressão e neutralizá-la com segurança, radpidez e eficiência.

Outra prática que faz uso do ki é o Reiki — que pode ser traduzido como “energia [ki] espiritual [rei]” ou “energia [ki] divina [rei]“. Através de invocações elaboradas, da inspiração divina e de uma vida ascética o praticante (reikiano) torna-se capaz de usar o ki para curar doenças. O ki é aplicado pela imposição das mãos em pontos específicos do corpo do paciente. A prática do Do-In, a Cura Prânica e diversos tipos de massagens orientais funcionam de forma semelhante ao Reiki.

O Tai Chi e o Qi Gong (Chi Kung) também são artes que se baseiam no ki, com algumas diferenças nas técnicas e nos objetivos.

O que me levou a escrever sobre o ki foi a percepção de que existem mais elementos comuns entre essas artes além do próprio ki. Isto sugere que os efeitos que nessas artes são atribuídos ao ki são na verdade os efeitos desses fatores combinados. É possível que o ki seja, em determinadas circunstâncias, precisamente a ação combinada desses fatores. Incapaz de perceber a existência desses elementos, tampouco a combinação deles, o indivíduo simplifica suas dúvidas e declara que o benefício que ele obteve com a prática daquela arte veio do ki. Não digo com isso que o ki não existe e que, portanto, as bases conceituais de artes como o Aikido e o Reiki não têm validade. O que quero dizer é que essas bases são menos importantes do que a prática diligente daqueles elementos que se combinam e que levam à “manifestação do ki”.

Os exemplos do Aikido e do Reiki serão esclarecedores. Falarei deles porque são as artes que conheço melhor e que pratico.

Há no Aikido, sobretudo no estilo chamado Ki-Aikido, os quatro princípios de coordenação mente-corpo. São eles: manter o peso na parte inferior do corpo, relaxar completamente, manter a atenção no tanden (o centro do corpo, situado cerca de dois dedos abaixo do umbigo) e estender o ki. Os dois primeiros princípios são princípios do corpo; os dois últimos, da mente. Manter o peso na parte inferior significa sentir os pés e o chão; relaxar completamente significa aliviar as tensões musculares desnecessárias. Manter a atenção no tanden significa ter a consciência de que ele existe e está lá, assim como sabemos que temos duas orelhas mesmo sem poder vê-las; estender o ki significa imaginar que uma energia é produzida em você e chega a um ponto determinado fora de você. Segundo os praticantes de Ki-Aikido, estes quatro princípios unidos fazem com o ki flua naturalmente pelo corpo. Com o ki fluindo naturalmente pelo corpo é possível utilizá-lo na prática das técnicas, o que as tornaria mais eficientes.

O Reiki, como já se disse, baseia-se em princípios parecidos com os do Aikido. Não existem técnicas marciais no Reiki, porque se trata de uma arte de cura direta. Há, no entanto, cinco princípios em que a prática deve se basear, que são os lemas do Reiki: “somente hoje não sinta raiva e não fique zangado”, “somente hoje abandone suas preocupações”, “somente hoje agradeça suas bênçãos, respeite seus pais, mestres e os mais idosos”, “somente hoje faça seu trabalho honestamente”, “somente hoje, mostre amor e respeito, e seja gentil com todos os seres vivos”. Os dois primeiros lemas são lemas pessoais, referem-se a emoções que o praticante pode sentir e que deve evitar. Os três últimos referem-se ao mundo ao redor e a como o praticante se relaciona com ele e se oferece a ele. Esses lemas não podem ser divididos entre princípios de mente e de corpo, como no Aikido, mas tentar fazer essa divisão sugere algumas semelhanças.

Nos dois casos, no Reiki e no Aikido, é clara a importância dada ao despojamento de tensões (“relaxar completamente” e “não sinta raiva”, “abandone suas preocupações”). É dada importância fundamental ao aqui-agora, à noção de que é no presente e exatamente no lugar em que você está que a ação acontece e os problemas se resolvem: “atenção ao tanden” e “somente hoje…”. Da mesma forma, é comum a noção de que o praticante deve oferecer algo bom, com honestidade: “estender o ki” e “faça seu trabalho”, “agradeça”, “respeite”.

Além disso, existem diversas semelhanças nas circunstâncias em que as práticas ocorrem.

Uma aula de Aikido ocorre num ambiente limpo, adequado, tão silencioso quanto possível. Esse ambiente é chamado dojo (“lugar em que se pratica o caminho”), que em muitos aspectos se assemelha a um templo religioso. Atenção e dedicação dos praticantes são fundamentais. Reverência e respeito são necessários e inevitáveis. Os parceiros de treino pedem um ao outro para treinar juntos a próxima técnica; ao fim, agradecem e permanecem em silêncio aguardando o sinal do instrutor (sensei) para a próxima prática.

Ao final da prática do Aikido há um ritual de agradecimento aos parceiros e ao sensei e recomenda-se manter-se atento a todos seus movimentos e gestos, de modo a perceber em si mesmo os efeitos do treino na mente e no corpo.

O Reiki, ao menos no Ocidente, é praticado em consultórios médicos ou esotéricos. O ambiente deve ser silencioso, limpo, confortável. O paciente deita-se numa superfície plana, como uma cama, mas não tão suave ao ponto de fazê-lo dormir imediatamente. O praticante aplica o Reiki enquanto o paciente permanece relaxado e de olhos fechados. Como o Reiki pode ser algo monótono, recomenda-se que o praticante tenha plena consciência do que está fazendo o tempo todo. Não é necessário imaginar nada, basta apenas impor as mãos sobre cada ponto do paciente (conforme especificado pela teoria do Reiki) e manter a atenção no que faz. Música e luz suaves são bem-vindas.

Ao final da sessão de Reiki não há recomendações especiais, embora o ambiente em que o Reiki se realiza e seus rituais convidem o paciente à serenidade e ao equilíbrio emocional.

No Aikido e no Reiki, grande parte dos benefícios é atribuída ao ki — ao desenvolvimento, ao domínio, à aplicação e à preservação do ki. Mas talvez esses benefícios sejam fruto de todos fatores assinalados anteriormente.

Esses fatores, reunidos, contrapõem-se ao modo de vida que a maioria das pessoas leva. No dia-a-dia, poucas pessoas têm oportunidade de perceber o próprio corpo (como no Aikido) ou de deitar-se especificamente para relaxar e receber os cuidados de outra pessoa, especialmente capacitada para isso (como no Reiki). As duas práticas, assim, sempre trarão benefícios enquanto o modo de vida predominante for aquele que inclui 40 horas de trabalho semanais, trânsito e poluição, alimentação irregular e respiração idem.

O Reiki e o Aikido são práticas curativas. O Reiki pelo caminho direto da cura, da solução de males físicos e emocionais. O Aikido, pelo caminho das técnicas marciais, como forma de gerenciar e resolver conflitos internos e externos. Se é verdade que o ki existe também na natureza, ele não se manifesta de uma forma muito evidente pelo simples fato de que a natureza não está doente. Doentes estamos nós e é por isso, pelo contraste, que teremos a impressão de que o ki está operando milagres quando na verdade estamos simplesmente fazendo coisas boas que não costumamos fazer, estamos retornando àquela naturalidade física e emocional tão comum nos bebês.

Bebês normais, como animais selvagens, árvores e riachos, não precisam de Reiki e de Aikido. Pode haver sentido, mas não há necessidade de aplicar Reiki neles, assim como é impossível oferecer-lhes os benefícios do Aikido. Simplesmente não há diferença entre o que algumas pessoas chamam de “fluxo natural do ki” e o que todos reconhecem como “corpo relaxado e mente serena”.

Kenshu Furuya, 6º dan de Aikido, é enfático ao repetir essa mesma idéia. O ki se manifesta através do corpo, o que nos leva a pensar mais atentamente na sinonímia entre mente, corpo e ki. Koichi Tohei, fundador do Ki-Aikido, diz que o corpo é a mente em estado bruto e que a mente é o corpo em estado refinado, idéia semelhante à de Furuya Sensei.

Não descarto a possibilidade de que algo diferente e extraordinário possa acontecer. Eu mesmo já experimentei coisas assim, que são explicadas unicamente com a palavra “ki”. Ser imobilizado no chão ao contato de um único dedo sobre meu pulso ou ter um braço aquecido rápida e subitamente quando uma pessoa toma meu pulso em sua mão são fatos que não podem ser explicados apenas com “relaxar completamente” ou “faça seu trabalho honestamente”. Independentemente do que tenham feito, elas estavam relaxadas e sendo honestas, não tenho dúvidas disso. Se o ki não é relaxamento e honestidade, o ki está no relaxamento e na honestidade e, assim, vale a pena manter-se relaxado e ser honesto, assim como vale a pena seguir os princípios do Aikido e do Reiki e praticar estas e outras artes de desenvolvimento e utilização do ki, por mais que o discurso soe esotérico demais para quem, como eu, está habituado a crer apenas depois de ver.
christianrocha.wordpress.com

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